O que venho propor hoje através deste texto é uma reflexão sobre a escolarização como a conhecemos hoje. O que temos hoje é hierarquia, um currículo rígido e uma escola que não ouve seu público: estudantes.
E para que serve essa formação escolar? Fato é que muitos responderiam que a escola tem um importante papel no processo civilizatório de uma sociedade. Civilizar e disciplinar crianças urbanas que vivem em cidades com pouco espaço livre e onde todo espaço é propriedade privada parece ser um tipo de mal necessário. Algo que propicia segurança às crianças escolarizadas.
Inclusive é possível encontrar discussões teóricas na literatura dos estudos educacionais que defenderão a imprescindibilidade de manter as crianças na escola para que a rua urbana não se torne um perigo para a integridade ou caráter delas.
No entanto, o que esse modelo de escolarização, com crianças enfileiradas em carteira apertadas, uma lousa a frente e um professor com postura autoritária ensinando conteúdos de forma enrijecida tem a oferecer para grupos societários que não vivem em áreas urbanas e que as crianças possuem uma forma de vida em que a aprendizagem prática se torna algo que poderíamos ousar a dizer ser natural?
Estou me referindo aos grupos indígenas, às pessoas que vivem na zona rural e aos grupos quilombolas. A escolarização civilizatória nessas comunidades acaba por reforçar a ideia de que a forma de vida - a cultura - própria dessas comunidades é atrasada, selvagem, primitiva e deve, por isso, ser superada.
Veja o filme: Escolarizando o Mundo: o último fardo do Homem branco
Quem já não ouviu uma pessoa que vive numa comunidade rural dizendo que fez ou fará tudo o que puder para que suas filhas ou filhos não vivam na zona rural? Essas pessoas vivem na zona rural, tiram seu sustento da terra e lutam para que os jovens saiam da comunidade rural.
Não seria mais interessante lutar para que o estar/viver em comunidades rurais seja sinônimo de bem viver, não de fracasso e atraso? (Não estou dizendo que pessoas que vivem em comunidades rurais deveriam ser obrigadas a continuar vivendo nelas).
A legislação brasileira (LDB 9394/96 - art. 28) diz que a oferta da educação básica para a população rural deverá promover adaptações necessárias no currículo e calendário para atender as peculiaridades de quem vive nas comunidades rurais.
Nesse sentido, há uma luta recorrente pela educação do campo travada pelos movimentos sociais vinculados a terra e a zona rural. Ainda assim, o que é comum nas escolas rurais é a aplicação do currículo urbano, sem nenhuma adaptação ou adequação. Comumente, seguem o calendário proposto para a cidade, o que pode prejudicar o rendimento dos estudantes quando ocorre período de chuvas longos ou no período de colheita - já que na agricultura familiar os jovens colaboram no trabalho realizado.
Para ficar mais claro o que digo sobre o calendário: já que a legislação prevê adequações, seria possível mudar o calendário remanejando o período de férias ou o período de avaliações para que estejam em equilíbrio com a vida rural. Não é o que ocorre!
As comunidades quilombolas e indígenas também são cobertas por esse direito a adequações necessárias em suas escolas.
Entretanto, por ser muito recente a criação de escolas em comunidades quilombolas, a educação quilombola ainda está no meio do processo de estabelecer um currículo e uma cultura escolar que inclua e valorize aspectos relacionados aos saberes quilombolas. Ainda é uma luta em curso!
Eu gosto muito da forma como Aracy Lopes da Silva inicia seu texto no livro "Crianças Indígenas: ensaios antropológicos". Aracy nos apresenta um panorama:
Outra vez a sineta, que agora anuncia o recreio. As crianças, como num passe de mágica, desaparecem atrás do edifício escolar, em bandos que correm. Ao novo soar do metal, elas retornam, rindo, aos poucos. (...) Gotas da água do córrego ao fundo da escola escorrem pelos cabelos longos e negros e são espantadas com um balançar da cabeça, ao encontro de mãos espalmadas ao lado do rosto. Um gesto típico do lugar, uma "técnica corporal" característica. As franjas, revoltas, são rapidamente ajeitadas, para que se alinhem, disciplinadas. As roupas vão sendo postas sobre os corpos molhados que se dirigem, mais uma vez, em fila, para seus lugares na sala de aula.*
Uma escola em que a criança está integrada com sua comunidade para além dos conceitos científicos ou da rigidez curricular. Essa é a escola que acolhe os saberes que existe na comunidade e que são, sobretudo, transmitidos pelas crianças.
Você consegue imaginar uma escola em que no recreio as crianças vão se banhar em um córrego? Voltam molhadas para a sala? Por que não?
A escola se torna na vida da criança um espaço que ela habitará por um longo espaço de tempo, por que a escola não pode ser um espaço construído pela e para a criança? Um espaço que ensine o currículo científico através de experiências vividas em comunidade, uma escola que valorize a comunidade em que está inserida, que valorize os recursos "didáticos" espalhados no seu entorno?
Isso me fez lembrar outro filme: A Língua da Mariposas (filme marlindo!)
A escola que permite que a criança seja criança. Com responsabilidades próprias a sua idade. A fala do Daniel Munduruku no vídeo abaixo é muito pertinente nesse sentido.
Passo a palavra para o Daniel Munduruku para que ele conclua essa reflexão por mim.
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*LOPES, Aracy. Pequenos "xamãs": crianças indígenas, corporalidade e escolarização. In.: LOPES, A.; MACEDO, A.V.; NUNES, A. Crianças Indígenas: Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global, 2002.

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