Uma professora, um espelho e um abraço

E se existisse um espelho capaz de refletir nossas emoções?




Um dia, ao voltar para casa, a professora Flora sentiu-se atraída pelo espelho que ficava em seu quarto.
Naquele dia, ela não tirou os sapatos na porta ao entrar, não pendurou a bolsa no lugar de costume e não fechou a porta após passar por ela.
Entrou com pressa, o espelho a chamava. Ao abrir a porta do quarto ela o viu pelo lado - o espelho ainda não havia a visto. O espelho estava diferente, havia um tipo de névoa azulada pairando em sua moldura.
Quando se deu conta daquilo, Flora congelou. Seus sapatos grudaram no chão, como se suplicassem que ela não fosse vista pelo espelho. Sua bolsa pesou em seu ombro, forçando-a a sentar-se no chão.
Contudo, a força do espelho era mais forte do que todos esses truques.
Tirou os sapatos, largou a bolsa cheia de provas para corrigir e foi até o espelho.

Ao tentar se ver no espelho, não se viu. No espelho havia uma monstra.
A cabeça da monstra era gigante, como a Rainha de Copas.
Seu pescoço era grosso, com veias que sobressaltavam a pele.
Os olhos eram grandes e amarelos - como olhos de icterícia.
Tinha as pálpebras roxas, como fúnebres caixões.
A boca era enorme e asquerosa. Os dentes eram grandes e afiados. Assustadores!
Havia uma gosma entre os lábios que se esticava cada vez que abria a boca.
E quando a professora Flora ousou dizer algo na frente do espelho, gotículas daquela gosma saiam daquela boca voando na direção da professora.
Suas orelhas eram minúsculas, quase inexistentes. E as narinas eram como as de um porco.
Das bochechas brotavam pelos acobreados.
Sua pele azulada, tinha aspecto ressecado e quebradiço. Os cabelos brancos eram compridos e lânguidos.
As mãos brancas como o pó de giz e os pés eram tão pequenos que a monstra não tinha equilíbrio algum.


A professora com o coração batendo acelerado oscilava entre fechar os olhos para negar aquela visão e encarar cada  detalhe para entender o que aquele espelho estava refletindo.
- Não pode ser eu?! - ela pensava.
- Como eu me tornei isso?!
- Até o momento em que saí da escola eu ainda era eu.
- É feitiço! É coisa feita!
- Não! Não pode ser... Deve ser um sonho! Acorda, Flora, acorda! - falava e dava tapas em sua face, enquanto a monstra também se estapeava no espelho.

Em meio ao colapso mental, a professora Flora desmaiou.
Durante o desmaio, sonhou. No sonho, ela pode encontrar a monstra cansada sentada sob uma árvore no pátio de uma escola.
Sozinha com a monstra em um sonho, a professora Flora teve medo de ir até ela.
Ficou observando-a de longe e percebeu que ela chorava uma solidão que doía também em Flora.
Flora não poderia adiar mais o encontro com aquela monstra. Precisava ouvi-la. Precisava encarar aquela boca enorme com dentes afiados ameaçadores e lábios gosmentos. Precisava suportar as gotículas de gosma projetadas em direção ao seu rosto enquanto a monstra falava.
E ela foi até a monstra. E apenas ouviu. Enquanto ouvia chorava também, pois ela conhecida cada uma daquelas dores.

Eram noites mal dormidas por ansiedade. O trabalho era infindável e os boletos comiam todo o seu salário. O dinheirinho das vendas dos cosméticos salvavam a cervejinha do final de semana, para não enlouquecer.
A cabeça vivia cheia, tão cheia de problemas e soluções ideais irrealizáveis que ela já não dormia sem uma dose de calmante.
Já não aguentava ouvir tanto barulho, seja externo ou interno.
Ela gritava, como gritava, diariamente gritava ordenando silêncio aos seus alunos.
Já não se cuidava, não se olhava no espelho, não passava aquele hidratante de pele que tanto gostava. Nunca mais tomou aquele banho demorado, que molha a alma.
Ela precisava ser dona de si. Precisava do seu equilíbrio de volta.

E depois de ouvir a monstra, deu-se conta que precisava cuidar dela. Ou seria de si mesma?
Compreendeu, por fim, que ela mesma havia feito de si uma monstra. Emocionada, abraçou a monstra com toda a sua afeição.
Acordou no chão do quarto. Não havia névoa no espelho. Porém, a professora Flora ainda tinha medo.
Levantou-se devagar com medo de encarar novamente a monstra do espelho.
Ao se olhar no espelho, se viu. Gostou do que viu. Contemplou o que viu com alegria e ternura.
Despiu-se e molhou-se no chuveiro num abraço demorado.


*****

Que no dia das professoras haja autocuidado. Feliz autocuidado, professoras!


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